“(…) De qualquer forma, enfocar apenas os contextos nacionais é com certeza a abordagem errada de um fenômeno em essência europeu como o Iluminismo Radical. O movimento ou corrente foi uma rede reformadora de longo alcance em termos filosóficos, sociais, éticos, de gêneros e de sexualidade e também de política, recebendo inspiração de uma ampla gama de fontes e tradições, apesar de que, a partir da década de 1660 em diante, tenha assumido um alto grau de coesão intelectual, girando em torno de Espinosa e do Espinosismo. Dada a amplitude de suas fontes e seu amplo impacto em todos os lugares, bem como a uma imensa reação antirradical em todos os cantos da Europa, o pré-requisito mais essencial para um entendimento equilibrado das suas origens, desenvolvimento, estrutura e recepção é adotar uma visão européia bem ampla. Apesar de difícil, para se conseguir uma cobertura equilibrada por meio de uma região diversa em termos culturais como é a Europa, é essencial trabalhar nessa direção, se pensarmos que uma manifestação tão crucial de história e cultura européia não deve ser menosprezada e marginalizada apenas porque não tem um alcance longo e perceptível para ser abordada nos termos das noções tradicionais da história ‘nacional’.(…)”

in: pag. 50

Titulo do original: Radical Enlightenment: Philosophy, Making of Modernity, 1650-1750
Ano de lançamento do original: 2001
Tradução: Claudio Blanc
Editor: Wagner Veneziani Costa
Produção e Capa: Equipe Técnica Madras
Revisão: Maria Cristina Scomparini, Sérgio Scuoto e Valéria Oliveira de Morais
São Paulo: Madras
2009
878 págs.

Sinopse:

O Iluminismo Radical foi um conjunto revolucionário de idéias que ajudaram a estabelecer as fundações do mundo moderno sobre as bases da igualdade, da democracia, dos valores seculares e da universalidade.

Nesse controverso e original estudo, o renomado historiador Jonathan I. Israel revela o papel essencial de Espinosa e influência do disseminado e subversivo movimento filosófico internacional conhecido antes de 1759 como “Espinosismo” nas revoluções intelectuais e políticas do século XVIII.

O objetivo principal do autor é transmitir o sentido do Iluminismo europeu como um único movimento bem integrado intelectual e culturalmente, mostrando diferenças de tempo e, sem dúvida, preocupado não apenas com os mesmos problemas intelectuais, mas quase sempre com os mesmíssimos livros e percepções em todos os lugares, de Portugal à Rússia e da Irlanda à Sicília.

Inomináveis Saudações a todos vós, leitores virtuais!

Antes de tudo, a relação dos temas tratados neste livro é extremamente necessária. Tomo de grandiloqüência única, assim se dividem os capítulos dele:

PARTE I: O “ILUMINISMO RADICAL”

1. Introdução
2. Governo e Filosofia
3. Sociedade, Instituições, Revolução
4. Mulheres, Filosofia e Sexualidade
5. Censura e Cultura
6. Bibliotecas e Iluminismo
7. Os Jornais Cultos

PARTE II: A ASCENSÃO DO RADICALISMO FILOSÓFICO

8. Espinosa
9. Van den Enden: Filosofia, Democracia e Igualitarismo
10. Radicalismo e o Povo: os Irmãos Koerbagh
11. Filosofia, a Intérprete da Escritura
12. A Negação dos milagres
13. O Sistema de Espinosa
14. Espinosa, Ciência e os Cientistas
15. Filosofia, Política e a Libertação do Homem
16. Publicando uma Filosofia Proibida
17. A Expansão de um Movimento Proibido

PARTE III: A EUROPA E AS “NOVAS” CONTROVÉRSIAS INTELECTUAIS

18. Bayle e o “Ateu Virtuoso”
19. As Disputas Brandenburguianas
20. Fontenelle e a Guerra dos Oráculos
21 A Morte do Diabo
22. Leenhof e a “Religião Filosófica Universal”
23. A Controvérsia sobre a “Natureza de Deus”

PARTE IV: AS CONTRAOFENSIVAS INTELECTUAIS

24. Novas Estratégias Teológicas
25. O Colapso do Cartesianismo
26. Leibniz e o Iluminismo Radical
27. Anglomania: O “Triunfo” de Newton e Locke
28. O Drama Intelectual na Espanha e em Portugal
29. A Alemanha e o Báltico: a “Guerra dos Filósofos”

PARTE V: O PROGRESSO CLANDESTINO DO ILUMINISMO RADICAL

30. Boulinvilliers e a Ascensão do Deísmo Francês
31. Refugiados Deístas Franceses no Exílio
32. O Romance Espinosista na França
33. O Deísmo Inglês na Europa
34. Alemanha: O Aufklärung Radical
35. O Impacto Radical na Itália
36. Manuscritos Filosóficos Clandestinos
37. De La Mettrie a Diderot
38. Epílogo: Rousseau, Radicalismo, Revolução

Sólido, instigante, conciso, bem escrito, racionalmente lógico e construtivamente metódico em seu natural conjunto de sistematização de uma pesquisa corporificando a melhor síntese possível para um assunto tão importante para compreendermos a construção do mundo contemporâneo “Iluminismo Radical: A Filosofia E A Construção Da Modernidade, 1650-1750”, de Jonathan I. Israel, se compõe de cada uma dessas qualidades e de muitas outras mais em sua estrutura. Cada uma das 878 páginas da obra são uma obra-prima de erudição imponente, instrutiva, impecável, indestrutível e impossível de não fascinar a quem for ler com calma, paciência e atenção. E falando na leitura, a mesma é profunda, requer mesmo uma paulatina rotina, sem correrias e ativações de qualquer motivo para afobação. São raríssimos os livros que hoje em dia prendem o leitor mais pelo seu fascinante poder de nunca querer terminar.

E ele mesmo não termina, pondo na mente diversas indagações e importantes alusões a diversos de seus temas. Israel arquitetou uma morada onde se pode ir e voltar à vontade, contando com uma fluidez de linguagem que, como a natureza de seu livro, também é rara nos dias atuais. Não há um momento sequer no qual o livro perca o fôlego ou leve o leitor a pensar em outros assuntos, é muito perspicaz a esquematização dos temas historicamente dispostos dando um panorama conciso de cem anos de uma história que ainda precisa ser melhor estudada e debatida. No trecho acima do livro, Israel declara que não apenas devemos diminuir o papel do Iluminismo Radical apenas atrelado a contextos históricos nacionais. O reducionismo histórico e até o revisionismo histórico não cabem em uma obra que se pretende narrar com impacto e vigor, que pulsantes são em um livro que não foi contaminado com a frieza do intelecto puramente científico, a trajetória de um radicalismo intelectivo que para muitos foi o ponto iniciador de recriação do mundo ocidental.

Pois, trinta e nove anos após 1750, quando termina o alcance narrativo do livro, ocorreu a Revolução Francesa, cujas sementes podem ser visivelmente detectadas no conteúdo do mesmo. E podemos ampliar a questão do contexto histórico para toda a Europa, que durante o período coberto pelo livro vivia conturbados momentos políticos, sociais e religiosos. A Igreja Católica como autoritária senhora absoluta de mentes, corpos e almas, foi um dos motivos do incêndio radical que tomou conta da Europa. As Monarquias com seus defeitos e desmandos, representados pelos abusos de poder dos nobres, especialmente foram incendiantes dos pensamentos radicais. Os livres-pensadores da época se dividiram entre Moderados e Radicais, havendo muitas vezes conflitos intelectuais e ideológicos entre adeptos dos dois grupos. E Baruch de Espinosa, o incendiador maior, atribuiu maior valor à radicalização do Livre-Pensamento Europeu como um furioso destruidor do arcaico pensamento de uma realidade teocraticamente opressora e involucionária.

“(…) Espinosa emergiu como o supremo bicho-papão filosófico do Iluminismo Primevo europeu. Entretanto, os historiadores raramente enfatizam isso. Era, e é ainda, muito mais comum afirmar que Espinosa foi pouco compreendido e que teve muito pouca influência, exemplo típico de un refrão historiográfico que parece ser totalmente incorreto, mas que, contudo, desde o século XIX, tem exercido uma duradoura atração em todos os tipos de estudiosos. De fato, ninguém mais durante o século 1650-1750 nem remotamente chegou a rivalizar a notoriedade de Espinosa como o principal desafiante dos fundamentos da religião revelada, idéias herdadas, tradição, moral e que era então considerado em todos os lugares — tanto nos Estados absolutistas como nos não-absolutistas — como autoridade política divinamente constituída. (…)”

in: pag. 197

Recomendo começar a leitura deste livro a partir do capítulo 8 que trata precisamente de Espinosa. A radicalização total do pensamento se inicia com ele e abunda para diversificadas direções e abordagens. Até posso afirmar que ele personifica toda a radical natureza do que o livro trata a cada página, desde o início do mesmo até sua última página. E como dito no trecho acima por Israel, ninguém realmente se compara no pensamento direto contra tudo que era autoridade constituída ao príncipe dos filósofos. Príncipe este perseguido até depois de sua desencarnação, seja através da condenação de seus livros ou da perseguição aos seus admiradores e continuadores, chamados de espinosistas. Em razão disso, mais forte ainda se firmou, afirmou e confirmou o radicalismo filosófico, arma contra todo sistema que escravizava o ser humano e que as Luzes, em sua espinha dorsal, vieram a combater. Luzes que na radicalização se tornaram grandes fachos que extinguiram a ignorância de muitos ou instigaram ainda mais a defesa do sistema vigente da parte de indivíduos portadores de mentes conservadoras.

“(…) Espinosa considerava-se, sem dúvida, tanto mundano como desprendido ao mesmo tempo; a partir de 1656, quando ele demonstrava uma patente falta de interesse por dinheiro e propriedade, não se pode dizer o mesmo com relação à posição e reputação. Ao contrário, tendo se dedicado inteiramente à Filosofia, ele buscou não apenas encontrar o ‘bem maior’ para ele mesmo, mas também, conforme está no final de Korte Verhandeling, ensinar o caminho da ‘salvação’ a outros. Seu objetivo, parafraseando Marx, não apenas mediar, mas mudar o mundo, um objetivo no qual, por fim, ele teve sucesso — e da forma mais extraordinária. Bayle observa que os amigos de Espinosa afirmaram, depois de sua morte, que ‘par modestie il souhaita de ne pas donner son nom à une secte’. Mas se ele acreditava ou não que isso era verdade, Bayle observa que Espinosa sem dúvida aspirava, como Toland e outros também observaram mais tarde, encontrar (necessariamente) uma ‘seita’ filosófica por meio da qual sua Filosofia, como a do seu herói de adolescência Descartes, transformaria o mundo.”

in: pag. 213

E a transformação do mundo ocorreu, mesmo às custas de sofrimentos, dores e toda a sorte de infortúnios para aqueles que livremente pensaram como ele. Dentre os fatos de perseguidos narrados no livro, o de Johannes e Adriaen Koerbagh é o mais emblemático de um tempo onde livremente pensar era considerado um hediondo crime. Outro assunto que merece a atenção e que destaco é o quanto livros foram vítimas de diversas tentativas de totalmente serem extintos do solo europeu. Resultou daí o comércio dos livros clandestinos, único modo de fazer com que o pensamento radical se propagasse com fertilidade entre os meios intelectuais a ele atados. Há para cada leitor que mergulhar em Iluminismo Radical um ou diversos temas de maior destaque e aqui nesta resenha abordei em um contexto geral a interpretação que faço do todo do resultado da minha leitura. Pensem neste livro como um grande tesouro que intelectivamente incentive interpretações das mais diversas através de caminhos de analíticas abordagens das mais extensas.Afinal, um livro de peso como este não quer cegos seguidores e, na minha opinião, Israel não o escreveu com o intuito de formar uma legião de discípulos por ele teleguiados. Há no cerne da obra como um todo a radicalização do método de se contar a História: com apaixonada erudição livre de orgulho e arrogância.

Livros como este são necessários a toda e qualquer biblioteca. 

Saudações Inomináveis a todos vós, Seres Do Mundo!


Deixe um comentário